Após um grave acidente sofri
um exílio, fiquei ausente de mim.
Fisicamente estava
completamente imobilizada, principalmente nos primeiros dias, só mexia os
olhos. Emocionalmente nem sei, não tinha noção do estrago feito ainda. Não dormia
e sentia dores o tempo todo. Quando, após uma semana, comecei a dormir sonhei
que andava, não acreditava nisso, até acontecer comigo, depois fui pesquisar.
Em entrevista, a deputada Mara Gabrilli relatou essa experiência e também
outras pessoas que sofreram o mesmo tipo de trauma.
Uma forte sensação de não pertencer
a mim se instaurou desde os primeiros dias.
Minha mente esqueceu quem eu era.
Minha vida parecia como um quebra
cabeça desmontado, com peças espalhadas, algumas faltantes. Precisava me
remontar, peça por peça. De que forma e por onde começar?
O acidente havia chacoalhado todas
as informações. Conhecimentos, palavras, lembranças, pessoas e tudo o mais que
fazia parte da minha vida, parecia como um filme, estavam ali, entretanto o meu
cérebro não fazia as conexões necessárias para dar sentido às informações.
Mesmo após a recuperação física, vivia no automático; trabalhava, estudava, me
relacionava, mas era como se não fosse eu que estivesse ali, estava assistindo
a minha própria vida.
Eu tinha a sensação de saber que
sabia, mas não conseguia dar sentido.
Perguntava todos os dias: “Meu Deus,
o que vai ser de mim? Nunca mais voltarei a ser eu mesma? Quem me roubou de mim?"
Não conseguia falar sobre isso com
ninguém, aprendi na faculdade que aquilo que não tem nome, não existe. Como
falar de algo que eu não conseguia nomear, identificar? Era como se não
existisse mesmo, mas existia. Estava ali o tempo todo. Uma falta, uma ausência
desesperadora de mim.
“Oh.
pedaço de mim,
Oh, pedaço arrancado de mim...
Oh,
metade exilada de mim
Oh,
pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim... ”
Oh, metade amputada de mim... ”
(Chico Buarque)
Um período na minha vida em que
a única diferença entre eu e uma pessoa que perdeu a memória, é que apesar de
não saber quem eu era, sabia que não tinha perdido a memória. Eu lembrava de
tudo, mas era como se não pertencesse a mim, a minha vida, como se tudo que
estivesse acontecendo fosse com outra pessoa e eu estava apenas assistindo. Eu
tinha sido arrancada da minha vida, da minha história.
Algumas coisas serviram de terapia;
livros, músicas e qualquer coisa que estivesse relacionada com minha recente experiência.
Reli Feliz Ano Velho de Marcelo Rubens Paiva, assisti ao filme Menina de Ouro,
assisti várias vezes Frida e li reportagens e artigos sobre o assunto.
Mesmo não ficando paralitica, tinha
a sensação de estar aleijada. Estava amputada, faltava uma parte de mim, e não
sabia como recuperar. O que mais podia fazer a não ser orar? Clamar ao Deus da
minha salvação?
Foi quando eu fiz da música
“Restitui” uma das minhas inúmeras orações:
“Os planos que foram embora
O sonho que se perdeu
O que era festa e agora
É luto do que já morreu
Não podes pensar que este é teu fim
Não é o que Deus planejou
Levante-se ... erga um clamor:
O sonho que se perdeu
O que era festa e agora
É luto do que já morreu
Não podes pensar que este é teu fim
Não é o que Deus planejou
Levante-se ... erga um clamor:
Restitui, eu quero de volta o que é meu
Sara-me, e põe teu azeite em minha dor
Restitui, e leva-me às águas tranquilas
Lava-me, e refrigera minh'alma
Restitui
Sara-me, e põe teu azeite em minha dor
Restitui, e leva-me às águas tranquilas
Lava-me, e refrigera minh'alma
Restitui
Restitui... eu quero de volta o que é
meu...”
Orava
para ser devolvida a mim, para ser restituída de meu ser.
Foi uma fase de intenso sofrimento e
aprendizado, hoje estou recuperada mais emocionalmente do que fisicamente.
Força de vontade? Um pouco. Destino?
Não creio. Milagre? De certa forma sim.
O fato é que restabeleci o controle
da minha vida, voltei a andar, recuperei minha identidade, mas inevitavelmente
uma parte se foi, como um casulo que precisava sair para dar lugar às asas.
Aprendi com esse exílio que nada,
absolutamente nada, é definitivamente nosso. Nem mesmo a subjetividade, a pessoalidade,
lembranças, memórias, identidade, vivências; tudo isso um dia a gente pode
perder, e de um instante ao outro toda sua vida muda.
São nesses momentos que constatamos que somos poeira
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